Nature Aquarium, uma história

Hoje de manhã estava navegando no Youtube quando me deparei com essa montagem da ADA, é um tanque de 180cm em estilo clássico Iwagumi. O estilo Iwagumi, de paisagismo com pedras, é herança dos jardins japoneses e suas representações naturais extremamente realistas, foi e continua sendo o estilo preferido de aquapaisagismo deste que vós escreve, é algo sentimental, reconheço. Tendo sido o primeiro estilo da empresa a ganhar o mundo, não só encantou como arrebatou uma legião de aquaristas que jamais haviam visto nada minimamente parecido, vou contar um pouco de história de como esse estilo alterou profundamente o aquarismo no Brasil. Ver esse vídeo fez passar um outro filme na minha cabeça, de como tudo começou lá pelos anos 90.


Em meados dos anos 90, quando nós finalmente começamos a ter acesso a internet residencial, a grande teia mundial (WEB) até então era algo bastante restrito, apenas grandes empresas e instituições de pesquisa tiveram acesso imediato, ao se popularizar e tornar-se acessível ela se transformou rapidamente o melhor canal para quem queria se aprofundar em qualquer assunto relacionado ao aquarismo e outros hobbys. 

Um aquário bem sucedido nos anos 80

A comunidade brasileira sempre foi pequena e, dadas as dimensões continentais do nosso país, era muito raro ter na mesma cidade grandes grupos de aquaristas dedicados, com algumas exceções como a cidade de São Paulo, onde tudo é superlativom então a rede era a forma de juntar essas pessoas espalhadas pelo país inteiro, e até fora dele. 

Revista @qua em 1998

Primeiro surgiram os mailing lists onde toda ação acontecia por e-mail, a grande maioria estrangeiros em língua inglesa, logo surgiram os portugueses, também as "revistas digitais" (alguém lembra da Revista @qua do Ricardo Miozzo? Foi ao ar em 1996!) que hoje você chamaria de blog, na época além do mailing havia páginas e páginas de artigos sobre os mais diversos assuntos relacionados ao aquarismo, acho que imprimi praticamente todas, organizei numa pasta. Finalmente, surgiram os Fóruns, que chegavam a reunir de centenas a milhares de aquaristas, com seus recursos mais modernos e com discursões categorizadas, geralmente moderados por pessoas com muita experiência e vontade de compartilhar, os anos 2000 foram os anos dourados do aquarismo brasileiro em termos de popularização e especialização, onde literalmente tudo mudou. 

Primeiro Nature Aquarium que eu vi na vida! 

Quando as primeiras imagens da ADA começaram a aparecer nas listas e fóruns, a de cima foi a primeira que eu lembro de ter visto, ainda nos anos 90, a empresa era tão desconhecida deste lado do mundo que as imagens pareciam irreais, algumas pessoas de fato duvidaram que fossem reais, tamanha era a disparidade entre o que elas exibiam e o que conhecíamos como aquário até aquela altura. Foi um choque, mas no bom sentido. Como isso é possível? Como eles fizeram? Que plantas são essas? E esse substrato? E essas rochas? Onde está o filtro de fundo? Aliás, tem filtro? E porque tão poucos peixes? E essa iluminação o que é? Eram muitas questões, com elas surgiram todo tipo de "supostas" resposta, algumas mais ou menos acertadas, outras verdadeiros tiros no escuro. Imagine só ficar acordado até as 5h da manhã, junto com mais umas 15 pessoas, tentando descobrir, virando a internet de cabeça para baixo (naquele tempo não existiam buscadores!) tentando descobrir o máximo possível sobre tudo isso. Era nosso divertimento noturno diário.

Típico setup ADA nos 90 com stand e luminária suspensa da linha Solar.

As dicas foram surgindo a conta gotas, pela fato da internet ainda não ser indexada, não existia a Google, tudo era mais difícil, você precisar saber o endereço das páginas para acessá-las. As coisas ficaram um pouco mais fácil quando começaram a criar os diretórios, que nada mais eram que listas de links categorizados, o Yahoo! nasceu assim nesta época, então alguns grupos mantinham páginas com links para todas as páginas, blogs, mailings e fóruns sobre aquarismo que eventualmente eram encontrados. Aos poucos as respostas começaram a chegar, e começamos a montar um quebra-cabeça, mas nem todas as peças se encaixavam, e muita coisa a gente simplesmente não consegui entender o conceito, pior, o conteúdo sequer existia em inglês e traduzir era uma tarefa árdua.

Site ADA Korea em 2008 parecia algo de outro planeta

O primeiro site oficial da ADA que conseguimos achar, exatamente de onde as imagens surgiram, era a versão Coreana, até porque a URL do site está em todas as imagens, mas para ter acesso ao site você precisava fazer um cadastro, esse cadastro exigia uma espécie de código, que depois de várias semanas descobrimos que era uma espécie de CPF Coreano, descobrimos como gerar um número válido e finalmente conseguimos ver o conteúdo, bateu uma frustração enorme, claro, estava tudo em Coreano. Mas podíamos finalmente ver os acessórios e produtos, imagens de difusores de CO2, sacos de substrato fértil, lâmpadas para aquário, filtros tipo canister, plantas e mais plantas que a gente só tinha algumas pistas do que poderiam ser, qualquer informação ajudava, os nomes das plantas em latim eram um pequeno consolo, pelo menos isso começou a ficar claro, pequenas tabelas com informações de filtragem, nossos "filtros" não tinha 1/10 da capacidade dos filtros daquela época, as informações sobre as lâmpadas eram basicamente desconhecidas da maioria de nós, lumens? IRC? Temperatura de cor? Era tudo grego, em Coreano. E, claro, absolutamente nada disso "existia" no Brasil, o que era uma certa ironia, pois mais tarde percebemos que muitas espécies de plantas eram, de fato, brasileiras, porém não existiam ou não eram ainda amplamente conhecidas no comércio local. 

Aquário típico no Brasil anos 80 e 90 a tampa abriga as lâmpadas que podiam ser fluorescentes tubulares e, posteriormente, lâmpadas PL (Compactas Fluorescentes)

Lembro que um colega comentou que acessar aquele site era como ser a Alice no País das Maravilhas, só que surda e muda. Era muita coisa para absorver, os conteúdos em inglês começaram a aparecer e algumas coisas foram ficando mais claras, como a injeção de CO2 onde alguém desenterrou um artigo de uma revista americana, dos anos 60 que falava do uso de CO2 em aquários com plantas no Japão, finalmente esse conceito começou a se estabeleceu como algo necessário para manter plantas, de uma forma como não conhecíamos antes, eram artigos e mais artigos explicando como gerar e porque usar CO2, das formas mais inusitadas inclusive. A iluminação, apesar de termos acesso a algumas lâmpadas específicas já nos anos 90, porém de baixa qualidade e preços elevados, conseguíamos improvisar com o que havia de mais acessível no mercado, as lâmpadas fluorescentes tubulares logo substituídas, com vantagens, pelas lâmpadas PLs compactas que eram mais econômicas e ofereciam uma qualidade de luz bem melhor, não era o ideal, os resultados variavam, mas os eram muito superiores ao que tínhamos antes. 

Filtro Biológico de Fundo (FBF) o tipo de filtro mais popular até meados dos anos 90 no Brasil.

Os substratos férteis são um capítulo a parte, isso foi uma completa novidade. Até a virada do século XXI o substrato padrão de 11 em cada 10 aquários brasileiros era o cascalho de rio lavado e, as vezes, colorido, com pessoas se aventurando ao uso de areia de rio lavada, que era muito mais adequada apesar de ainda não ter qualquer tipo de fertilização, até as areias de praia lavadas e tratadas com ácidos para remoção de qualquer material alcalinizante, mas que ofereciam sérios desafios a longo prazo e não eram esteticamente muito agradáveis no final. Foi muito mais difícil conseguir algo similar, se compararmos ao CO2 e Iluminação, entre muitos muitos erros e alguns acertos o húmus de minhoca,  tratado e isolado por uma camada de substrato estéril, finalmente surgiu como alternativa viável, com sérios problemas de excitabilidade, visto que o tratamento envolve muitos passos e, além disso, a própria qualidade do húmus de minhoca influencia no resultado final, e esse produto não tem padronização alguma no mercado, você poderia achar um ótimo húmus e um péssimo, na mesma loja, e não ser capaz de diferenciá-los, porém o conceito de fertilização estava plantado e lançando raízes. Foram anos até chegar a algo minimamente eficiente, no estrangeiro eles gozavam de uma certa vantagem por já existirem, nos anos 90, alguns tipos de substratos específicos, de argila calcinada, com composições diversas e potenciais variados de fertilização, o conceito de fertilização líquida era mais sólido lá fora e demorou a chegar por aqui, mas com o tempo e muita experimentação conseguiram desvendar a composição de vários fertilizantes e produzir em casa, milhares de pessoas experimentando, muita frustração com péssimos resultados, haviam verdadeiras bizarrices sendo divulgadas e, como estava na internet, era "verdade". Ainda assim e com todas as dificuldades finalmente tínhamos a tríade do aquário plantado: CO2, Iluminação e Substrato Fértil/Fertilização. 

Alguns produtos começaram a surgir na esteira das pesquisas e experimentações da comunidade.

O conceito de equilíbrio biológico do aquário, embora não fosse exatamente desconhecido, existia em um subplano do aquarismo, basicamente filtragem era para manter a água limpa e o fundo do aquário limpo de resíduos e ponto. A ideia da filtragem biológica e ciclo biológico não era exatamente muito populares, e o expoente nessa área, naquele momento, ainda eram os filtros biológicos de placas, com poucas pessoas se aventurando com os filtros externos, geralmente muito subdimensionados e, mais raramente ainda, usando filtros canister. Aqui temos uma questão profundamente tecnológica e econômica, pois os filtros, em sua grande maioria, eram importados, custavam muito caro, muito mais que hoje e, portanto, poucas pessoas tinham acesso aos mesmos. A ADA chamou a atenção de muitos para essa questão justamente por superdimensionar, em nossa perspectiva, a filtragem biológica dos aquários, além disso descobrimos que levava meses até o aquário ser povoado com peixes e, outro detalhe importante que você precisava ser atento para perceber: A quantidade de peixes era muito menor do que estávamos acostumados a praticar. Fora que havia uma infinidade de produtos que nós não fazíamos a menor ideia do que eram e pra que existiam, aceleradores biológicos, substrato para fixação de bactérias e absorção de nutrientes, difusores de CO2, um conjunto intricado de fertilizantes líquidos e condicionadores. 

Filtro Canister Caseiro com canos de PVC, a necessidade é a mãe da invenção. Trabalhoso, mas funcionava.

Estava claro que estávamos praticando algo que não era exatamente o adequando, mas as questões de como e porque ainda demorariam bastante tempo para serem respondidas e entendidas, também aceitas. Aposto que até hoje existem discussões sobre volume de filtragem e tipos de mídias nos fóruns. Muita gente apelou para o faça você mesmo (DIY) para atender a falta de equipamentos e minimizar os custos, até os sumps, tão populares em aquários marinhos, começaram a ter muito popularidade em aquários doce, economicamente eles eram muito mais acessíveis, era possível usar grandes quantidades de mídias biológicas, lembrando que hoje você acha essas mídias em qualquer lojinha, mas naquela época, não. Usaram de tudo, desde bioballs de aquários marinhos, a cacos de telhas, cascalho, redinhas de frutas, esponjas de banho, carvão, bolas de argila usadas em jardinagem para drenagem... Não duvido de terem experimentado qualquer coisa que fosse possível colocar dentro do filtro. A ascensão e queda dos sumps em doces veio acompanhada do entendimento do ciclo biológico e da disponibilidade de CO2 e O2 dissolvidos no sistema. Mas isso demorou.

A maioria destas plantas era totalmente desconhecidas dos brasileiros.

Algo que nos deixava eufóricos era a grande variedade de plantas incríveis que a ADA usava em seus tanques, algumas nós jamais havíamos sequer ouvido falar, num primeiro momento isso acometeu não só os brasileiros, mas também os americanos em geral, os europeus estavam em vantagem, porque contavam com um grande produtor local, a Tropica, mas mesmo eles não possuíam ainda uma grande quantidade de espécies. Varias delas chegaram dos EUA, após serem disponibilizadas por lá, vindas em pacotes cuidadosamente embalados nas malas dos que iam de férias para o país do Tio Sam. Algumas mais resistentes sobreviviam a jornada dos correios, mas as mais delicadas geralmente chegavam mortas. Musgos foram um desafio a parte, são até hoje, apesar de muitas variedades estarem disponíveis localmente. 

Página da VectraPoint em 1998, acredito que essa "marca" em algum momento deveria ter sido a marca da ADA para o Ocidente, mas a ideia aparentemente não seguiu adiante.

Os mais corajosos compravam de vendedores asiáticos e torciam para as plantas não só chegarem, as chances dos pacotes serem retidos era alta, e chegarem vivas, muito dinheiro e nervos foram investidos nessa parte. Mas acabou funcionando. Cada espécie nova era uma alegria. Lembro do aquário do Giancarlo com a primeira moita de Hemianthus do Brasil, e ele com pena de cortar para fazer mudas, também lembro das fotografias, quase diárias, das primeiras Glossostigma crescendo, era uma comoção a cada novo estolão. 

Display de plantas aquáticas em uma loja Alemã. Os alemães eram até então os que tinham a maior experiência na manutenção de plantas aquáticas e o mercado interno já era muito bem desenvolvido no final dos anos 90.

Como o amadurecimento da comunidade e os concursos de aquários começando a surgir, principalmente na esteira do IAPLC promovido pela ADA, o número de aquaristas praticantes do Nature Aquarium aumentou consideravelmente a partir dos anos 10 em todo o mundo, os brasileiros começaram a despontar e a ganhar prêmios, logo nasceu o CBAP, que tive a honra de contribuir na organização por longos anos,  hoje é um grande termômetro do Aquapaisagismo Nacional. Nesse meio tempo finalmente a ADA começou a publicar conteúdos de seus guias em língua inglesa, todo o universo do sistema desenvolvido pela empresa se tornou acessível e ficou muito mais fácil entender como tudo funciona, é uma tremenda engenharia o sistema que eles vendem, e serviu de fundação para muito do aquarismo se tornou no mundo todo. 

CBAP no longínquo ano de 2006

Foi uma caminhada e tanto aqui, quem chega hoje tem acesso as respostas de praticamente todas essas questões, os produtos nacionais de qualidade já existem, toda uma indústria se desenvolveu para atender as demandas dos aquaristas. Foi uma experiência incrível ter feito parte do começo da caminhada, as amizades, as descobertas, as teorias malucas, os acertos. Hoje me divirto torcendo pelos nossos representantes nos concursos nacionais e internacionais, saímos de um ponto obscuro do aquarismo e somos referência no mundo, temos grandes aquapaisagistas brasileiros, alguns até anônimos, mas o fato é que a sementinha plantada anos atrás lançou raízes e cresceu. Tenho um orgulho enorme do que tudo isso se tornou.

Atualização 1: 
Já que é uma postagem de história, aqui vai mais uma. De 2006 até 2009 hospedei um pequeno site, estático em html puro, num finado serviço de hospedagem da Globo, a url era www.takashiamano.kit.net e nesse pequeno pedaço de internet eu coloquei todas as páginas que eu consegui traduzir do antigo site da ADA, a intenção nunca foi se apropriar do conteúdo, mas tão somente compartilhar com todos que tinham curiosidade sobre os produtos e as técnicas da empresa. Salvei um pequeno print da página principal. Quando o serviço Kit.net foi descontinuado pela Globo o xylema.blogspot.com foi criado.

www.takashiamano.kit.net 2006 - 2009


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